No G20, ministro francês pede 'respeito ao Estado de Direito' e diz que não há base jurídica para confisco de ativos russos

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Bruno Le Maire defendeu o uso dos lucros provenientes dos ativos bloqueados, mas questionou a apropriação de bens pertencentes a outro Estado


Por Renato Vasconcelos | O Globo — São Paulo

O ministro da Economia e Finanças da França, Bruno Le Maire, afirmou que o sistema internacional não possui nenhuma base legal para que ativos russos congelados por sanções ocidentais sejam retirados e enviados para a Ucrânia — proposta americana defendida pela secretária do Tesouro dos EUA, Janet Yellen, na terça-feira. Em uma declaração no G20, em São Paulo, Le Maire afirmou que é cada vez mais necessária a construção de uma unidade em torno de Kiev na guerra com a Rússia, mas que é necessário respeitar o direito internacional.

O ministro da Economia e das Finanças da França, Bruno Le Maire. — Foto: Thomas Samson/AFP

— Não acreditamos que exista uma base jurídica suficiente. Entendemos que tomar uma decisão tão significativa [utilizar ativos bloqueados de outro país], que consiste em utilizar a propriedade estatal, necessita de uma base jurídica muito forte. E essa base jurídica deve ser aceita não só pelos países europeus, não só pelos países do G7, mas por todos os estados membros da comunidade internacional — afirmou Le Maire, em uma declaração à imprensa no Prédio da Bienal, na capital paulista.

O ministro francês afirmou que a crise no Leste Europeu é um dos principais fatores de instabilidade para a economia global, mencionando também a crise de segurança no Oriente Médio e no Mar Vermelho. Le Maire disse que tanto ele quanto o presidente francês, Emmanuel Macron, entendem que a guerra na Ucrânia deve acabar com uma "vitória para o povo ucraniano", mas questionou o método mencionado por Yellen no dia anterior.

A secretária americana afirmou, em um evento na terça-feira, que os líderes globais deveriam apoiar uma medida para que os recursos da Rússia alocados no exterior fossem desbloqueados e usados para financiar a resistência ucraniana e ajudar o país no longo prazo. Segundo Yellen, a medida seria "uma resposta decisiva à ameaça sem precedentes da Rússia à estabilidade global" e ajudaria a forçar Putin a sentar à mesa de negociação. A autoridade americana, contudo, admitiu que haveria "riscos financeiros" intrínsecos à decisão, mas que Washington estudava medidas para mitigá-los.

Apesar do ceticismo quanto ao uso dos ativos, Le Maire defendeu a continuidade do uso dos lucros provenientes dos valores congelados — de acordo com o ministro, há cerca de 300 bilhões de euros (R$ 1,6 trilhão, aproximadamente) bloqueados por países do G7. O representante francês afirmou que a utilização desses recursos foi proposta pelo país em uma reunião do Fundo Monetário Internacional (FMI) no ano passado. Ele estimou que entre 3 bilhões e 5 bilhões de euros (entre cerca de R$ 16 bilhões e R$ 27 bilhões) foram usados desde então.

— Os países do G7, os países europeus, não devem tomar qualquer medida que possa prejudicar o sistema jurídico internacional. O G7 baseia-se no Estado de Direito. O G7 deve agir respeitando o Estado de Direito. O que significa que, se não temos a base legal para apreender os ativos russos, precisamos trabalhar mais — afirmou.

O tema dos ativos russos movimentou os encontros à margem do G20. Em uma reunião entre integrantes do G7, na terça, o tema entrou em pauta, com posicionamentos divergentes entre as principais capitais ocidentais. Em uma declaração à agência francesa AFP, o ministro das Finanças da Alemanha, Christian Lindner, afirmou que o uso de ativos russos congelados foi discutido entre as autoridades, chamando-o de “um passo realista e juridicamente seguro, que pode ser implementado em curto prazo”.

Após a declaração pública de Yellen, ainda na terça-feira, o ministro das Finanças da Rússia, Anton Siluanov, classificou como "profundamente falaciosa" e "destrutiva" a proposta de confisco dos ativos russos. De acordo com Siluanov, a medida afetaria os pilares do sistema financeiro mundial, tornando as reservas em ouro e moeda estrangeira dos países "vulneráveis e suscetíveis a decisões políticas". O russo prometeu uma resposta à altura caso a medida fosse concretizada.

— Quanto à nossa resposta, temos algo com que responder, porque temos [ativos] congelados do nosso lado. Dado que uma quantidade considerável de ativos estrangeiros e também de muitos investidores estrangeiros estão investidos nos nossos títulos, tanto no setor empresarial quanto no setor público, e ainda estamos efetuando pagamentos aos detentores de tais títulos russos no estrangeiro — afirmou. — Essas decisões não nos levariam ao caminho certo porque, em vez de agravar a situação, precisamos diminuir a escalada, reduzir as tensões. Se as contrapartes decidirem prosseguir por esse caminho, responderemos simetricamente.

Tensões com a Rússia


A posição mais cautelosa com relação ao confisco dos ativos russos ocorre após um pico de tensão entre Paris e Moscou motivada por falas do presidente francês, Emmanuel Macron, consideradas ofensivas pelo Kremlin. Na segunda-feira, Macron afirmou que o envio de tropas ocidentais à Ucrânia não poderia "ser excluído".

— Nós faremos tudo que seja necessário para garantir que a Rússia não vença essa guerra. Todo o possível para alcançar esse objetivo — disse o presidente francês, acrescentando que nem mesmo o envio de tropas terrestres deveria ser descartado, embora pontuando que não há consenso sobre o tema. — Muitas pessoas que dizem "nunca, nunca" hoje foram as mesmas que diziam "nunca [mandaremos] tanques, aviões, mísseis de longo alcance" há dois anos. Tenhamos a humildade de notar que muitas vezes atrasamos de 6 a 12 meses [na tomada de decisões]. Este foi o objetivo da discussão desta noite: tudo é possível se for útil para atingir o nosso objetivo.

A Rússia rebateu as declarações do líder francês um dia depois, na terça-feira, afirmando que o envio de soldados para a Ucrânia "não convém" ao Ocidente. O porta-voz do Kremlin, Dmitry Peskov, afirmou a jornalistas que o simples fato de Macron ter levantado essa possibilidade supõe "um novo elemento muito importante" na guerra, que completou dois anos no último fim de semana.

A fala causou inquietação na própria França e entre líderes europeus, que, apesar do apoio financeiro e militar a Kiev, rejeitam o envio de forças terrestres. A Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte) e o governo dos EUA, principal integrante da aliança militar, também afastaram a ideia. 

(Com AFP)

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