Terrorismo em Cabo Delgado: "O inimigo tem rosto, é moçambicano e jogou futebol connosco"

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Um estudo recente aponta falta de vontade ao Governo moçambicano para negociar com os insurgentes que desestabilizam Cabo Delgado. Para o autor da investigação, João Feijó, o diálogo é a solução.

Nádia Issufo | Deutsch Welle


Em entrevista à DW África, o investigador do Observatorio do Meio Rural (OMR), uma organização não governamental moçambicana, João Feijó refere que os terroristas que protagonizam ataques armados em Cabo Delgado são moçambicanos, bem identificados pelas comunidades locais.


Forças estrangeiras apoiam Moçambique no combate a grupos armados em Cabo Delgado © DW

Um estudo recente do OMR intitulado "Do inimigo sem rosto à hipótese de diálogo: Pretensões e canais de comunicação com os machababos", são apresentados os "currículos" de algumas das principais figuras que comandam a insurgência em Cabo Delgado. Algumas delas foram sancionadas pelos Estados Unidos de América, desmanchando o mito de serem desconhecidos os indivíduos por trás da insurgência.

João Feijó entende que há canais de comunicação que precisam ser explorados pelo Governo para permitir encetar negociações com os insurgentes.

DW ÁFRICA: Quase quatro anos depois do início da insurgência, pode-se concluir que não há vontade política para negociar?

João Feijó (JF):
Há um discurso oficial por parte do Governo de Moçambique de que o inimigo não tem rosto, não sabemos o que eles querem, não há canais de comunicação. Nós queremos demonstrar que o inimigo tem carne e osso. São pessoas comuns, conhecidas pela sociedade local. Têm um caderno de reivindicações que ainda que é pouco estruturado e imaturo, mas existe. Em terceiro lugar queremos mostrar que há canais de comunicação. Sobre o diálogo, achamos que deve ser entendido não como uma forma simplesmente formal no sentido de negociação sentado à mesa, mas como uma coisa mais abrangente, que possa incluir a possibilidade de libertação de reféns ou de pessoas raptadas. Mas também pode abranger assistência às pessoas que estão nas zonas da insurgência. Ou seja, uma negociação abrangente, que deve incluir a possibilidade de se repensar o modelo de desenvolvimento.

DW ÁFRICA: O Observatório do Meio Rural indica os nomes dos envolvidos nas insurgências. Também os EUA o fazem e sancionam até essas figuras. Não seria este um elemento motivador para as autoridades avançarem para as negociações com os insurgentes?

JF:
O que importa é desmitificar a ideia de que o inimigo não tem rosto. O inimigo é moçambicano, é uma pessoa que nasceu entre nós, que jogou futebol connosco, que estudou connosco e que, em determinada altura, se radicalizou e explorou as contradições sociais existentes na sociedade moçambicana.

Acho que quer o relatório dos Estados Unidos, quer este relatório atual, fornecem subsídios que permitem uma reflexão nacional, não só por parte do Governo moçambicano, no sentido de alagar os horizontes e criar um novo paradigma de reflexão, que seja menos bélico e que crie espaços de negociações.

DW ÁFRICA: O facto do antigo Presidente de Moçambique, Joaquim Chissano, ter apelado para negociações pode fazer o regime aposta nesta iniciativa?

JF:
Sem dúvida. O Presidente Joaquim Chissano é alguém que tem uma grande experiência ao nível da governação de Moçambique e ao nível da gestão de conflitos. É alguém que, quando chegou ao poder, herdou uma guerra que existia entre o Governo e a RENAMO, em que as posições estavam muito extremadas. Neste contexto em remou contra a corrente e criou novos paradigmas de reflexão e as condições para permitir que houvesse os encontros de Roma e que as partes em conflito aw sentassem e refletissem sobre um país que têm em comum.

DW ÁFRICA: Estamos diante de uma repetição de abordagem por parte da FRELIMO de relativa arrogância ao catalogar os seus opositores como terroristas ou bandidos armados?

JF:
Sim, de facto, existe esse obstáculo nas negociações entre o partido que está no poder e a oposição. Mas é um obstáculo que é transversal a toda a sociedade moçambicana e que deriva da nossa própria cultura de poder. Ou seja, nós encaramos o poder, não como uma relação, não como um espaço em que temos que negociar, mas como uma coisa que temos que possuir. Encaramos a possibilidade de fazer cedências como um sinal de fraqueza. Então, quando nós temos esta cultura política arrogante, torna-se complicado entrar num espaço de negociação, porque já entramos no espaço com uma atitude dominadora. Acho que isto pode ser uma lição não só para o Governo de Moçambique, mas para toda a sociedade.

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