Família de pescador colombiano morto em ataque dos EUA no Caribe exige justiça

Ações militares dos Estados Unidos na região já provocaram pelo menos 80 mortes e ameaçam rotina de pescadores


Por Simon Romero e Frederico Rios | O Globo — Santa Marta, Colômbia

Em meados de setembro, Alejandro Carranza, um pescador colombiano que, segundo sua família, navegava há tempos pelo Caribe em busca de marlins e atuns, ligou para sua filha adolescente. Disse a ela que ia pescar e voltaria em alguns dias. Ele nunca mais voltou. No dia seguinte à sua partida, em 15 de setembro, sua família, outros pescadores e o presidente da Colômbia, Gustavo Petro, afirmaram que Carranza foi morto em um ataque militar dos EUA contra seu barco. A comoção em torno do ocorrido reacendeu a polêmica sobre o enorme aumento da presença militar dos EUA no Caribe e a legalidade dos ataques fatais contra 20 embarcações desde setembro.

Pescadores chegam à praia no final do dia em Santa Marta, Colômbia — Foto: Federico Rios Escobar/The New York Times

— Nunca imaginei que perderia meu pai dessa forma — disse Cheila Carranza, de 14 anos, esta semana, contendo as lágrimas enquanto olhava para uma foto dele em seu celular, na casa apertada de sua avó, onde vive em um único cômodo com a mãe e dois irmãos.

À medida que o número de mortos em decorrência dos ataques dos EUA contra embarcações em águas próximas à América Latina aumenta, as tensões crescem com a Colômbia, que por muito tempo foi um dos principais aliados dos EUA na região. Até o momento, 20 ataques dos EUA mataram pelo menos 80 pessoas.

Os ataques enfureceram Petro, que acusou os Estados Unidos de assassinarem Carranza em um dos atentados. O presidente americano, Donald Trump, respondeu impondo sanções a Petro e sua família e reduzindo drasticamente a ajuda ao país. Esta semana, a Colômbia suspendeu o compartilhamento de informações de inteligência com os Estados Unidos até que cessem os ataques.

O governo Trump alega que as ações ocorreram contra embarcações que transportavam drogas ilícitas e que mataram milhares de americanos. Mas muitos especialistas jurídicos nos Estados Unidos e em outros países afirmam que os ataques violam o direito internacional, pois os mortos, mesmo que fossem suspeitos de cometer crimes, não representavam uma ameaça imediata.

Corpos mutilados começaram a aparecer nas praias de Trinidad e Tobago após os ataques dos EUA na região. Os únicos dois sobreviventes conhecidos dos ataques não são da Venezuela, mas sim da Colômbia e do Equador.

O governo Trump chamou o presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, de líder de um cartel de drogas e afirmou em conversas privadas que o objetivo do deslocamento de tropas americanas, o maior em décadas na América Latina, é derrubar o líder autoritário do poder. O governo dos EUA não apresentou provas, além de descrições de avaliações de inteligência e trechos desclassificados de imagens de vídeo, de que qualquer uma das embarcações destruídas transportava drogas. Ao mesmo tempo, no caso de Carranza, não há como determinar com certeza se ele era apenas um pescador ou se estava envolvido com tráfico de drogas.

Família contesta acusação

Em uma coletiva de imprensa no mês passado, Petro afirmou que Carranza era de uma família tradicional de pescadores, mas que "pode ​​ter se envolvido, ainda que de forma intermitente", com drogas. Muitos pescadores em comunidades costeiras e insulares, disse ele, se envolvem com o transporte de drogas porque a pobreza lhes deixa poucas alternativas.

Os ataques deixaram a família de Carranza em choque e buscando respostas, oferecendo um raro vislumbre da pressão que a presença militar dos EUA pode impor àqueles que ficam para trás, enquanto o número de vítimas dos ataques mortais continua a aumentar. A família contratou um advogado americano, que disse estar preparando uma ação judicial.

Katerine Hernández, mãe de três dos filhos de Alejandro Carranza, contestou a afirmação de Trump de que o ataque que matou seu ex-companheiro, juntamente com outras duas pessoas que estavam no mesmo barco, teve como alvo “narcoterroristas venezuelanos confirmados”.

— Alejandro não tinha nada a ver com a Venezuela. Ele passou a vida inteira aqui na Colômbia — disse Hernández, de 37 anos, em entrevista em Santa Marta, uma cidade ensolarada no litoral norte da Colômbia, onde conheceu Carranza quando tinha 13 anos.

Carranza, de 42 anos, também trabalhava ocasionalmente como piloto de barcos para outras pessoas nas águas ao redor de Santa Marta, disseram sua família e outros pescadores, o que levanta a possibilidade de que o barco em que ele estava transportasse algo ilícito, com ou sem o seu conhecimento. Mas Hernández afirmou que Carranza nunca esteve envolvido com tráfico de drogas.

— Se ele fosse algum tipo de narcoterrorista, por que estamos vivendo na miséria em vez de numa mansão? — questionou a ex-companheira.

Apesar de estarem separados há alguns anos, Hernández disse que ela e Carranza continuaram próximos. Até recentemente, ela e os filhos moravam com os pais dele. Embora ele raramente ganhasse mais do que o salário mínimo mensal da Colômbia, cerca de US$ 382 (R$ 2.023), ​​ela disse que ele sempre garantia o sustento dela e das crianças.

Agora, Hernández disse que eles estão sobrevivendo graças à bondade de parentes que também não têm quase nada. Ela e os três filhos estão morando na casa da mãe dela em Gaira, uma área humilde de Santa Marta, não muito longe das praias reluzentes da cidade.

Ações 'ilegais'

Dan Kovalik, um advogado americano contratado pela família do pescador, afirmou que, mesmo que Carranza fosse suspeito de pilotar uma embarcação transportando drogas ilícitas, matá-lo seria ilegal.

— Se as pessoas a bordo da embarcação fossem suspeitas de tráfico de drogas, deveriam ter sido presas, não mortas — declarou Kovalik, que planeja entrar com uma ação judicial nos Estados Unidos buscando indenização para a família de Carranza.

As identidades dos outros dois homens a bordo da embarcação permanecem desconhecidas. O governo Trump não respondeu imediatamente a um pedido de comentário.

— Este caso é importante sob dois pontos de vista — acrescentou o advogado. — Primeiro, a família merece uma indenização pela perda. Segundo, queremos que este caso ajude a impedir que esses assassinatos aconteçam novamente. Isso é assassinato e está destruindo o Estado de Direito.

Impactos financeiros e emocionais

Desde que Carranza partiu para a pescaria há dois meses, sua ex-companheira Hernández disse que suas vidas foram destruídas. Antes do ataque dos EUA, ela contou que já estava impossibilitada de trabalhar após um acidente de moto que danificou gravemente sua perna direita — perto do local no tornozelo onde ainda tem o primeiro nome de Carranza tatuado.

As mensalidades escolares de Zaira, sua filha de 17 anos, estão atrasadas, contou ela, enquanto seu filho, Libiston, de 11 anos, ficou traumatizado depois que outra criança lhe mostrou o vídeo compartilhado por Trump, aparentemente mostrando o barco do pai sendo destruído pela explosão.

Hernández disse ainda que algumas pessoas questionaram se Carranza realmente morreu, já que seu corpo não foi encontrado. Outras tentaram insinuar que ele estava envolvido com tráfico de drogas, disse ela, devido a um histórico de problemas com a lei.

Em um caso de 2012, Carranza participou de um esquema para roubar armas que haviam sido confiscadas em processos judiciais, segundo autoridades colombianas. Hernández e Adenis Manjarres, de 30 anos, primo de Carranza, afirmaram que ele nunca foi preso em relação ao caso. E as autoridades colombianas não tinham mais informações sobre o desfecho do caso.

Leonardo Vega, de 40 anos, amigo de longa data de Carranza e líder de uma associação de pescadores em Santa Marta, disse ter certeza de que o colombiano foi morto no ataque de 15 de setembro.

Ao ver o ataque nas redes sociais, Vega disse que o tipo de barco no vídeo era exatamente o usado pelos pescadores de Santa Marta, em contraste com barcos de design diferente que partem da Venezuela.

— Imediatamente pensei: "Ele é um dos nossos" — contou Vega.

Ele acrescentou que o barco destruído tinha dois motores, em vez dos três ou quatro usados ​​em embarcações normalmente utilizadas para o contrabando de drogas ou outros produtos ilícitos. Os pescadores podem ficar fora por cerca de uma semana, muitas vezes dormindo em redes em praias desertas, acrescentou ele.

— Mas dois meses fora, impossível — acrescentou Vega.

Vega disse que Carranza era conhecido por sua personalidade tranquila entre os outros pescadores de Santa Marta. Ele era conhecido pelo apelido de “Coroncoro”, que se refere a um pequeno peixe típico da região, e gostava de beber cerveja e jogar bilhar.

Além dos problemas que a família de Carranza está enfrentando, os ataques dos EUA semearam o medo entre os pescadores de Santa Marta, contou Vega, e os deixaram relutantes em trabalhar. Agora é época de pesca do atum, geralmente uma das épocas mais lucrativas para os pescadores saírem para o mar. Mas o medo do que pode encontrá-los lá praticamente paralisou a pesca, relatou.

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